NOTA TÉCNICA Nº 2/2020 -
O FÓRUM NACIONAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS – FONAJE,
entidade que congrega os Magistrados integrantes do Sistema dos Juizados Especiais,
nos diversos segmentos de competência, graus de jurisdição e Tribunais de todo o
Brasil, tendo em vista o recente julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade –
ADI nº 3807 – pelo Supremo Tribunal Federal, vem se manifestar sobre a atribuição
para a lavratura de Termos Circunstanciados de Ocorrência (TCO´s), especialmente
nos processos relativos aos crimes de posse e cultivo de drogas para uso próprio, de
competência dos Juizados Especiais Criminais.
Ao ingressar com a ADI 3807, a Associação dos Delegados de Polícia
do Brasil (ADEPOL) pretendia o reconhecimento de incompatibilidade do § 3º do art. 48
da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) com os §§ 1º e 4º do art. 144 da Constituição
Federal.
Em resumo, a ADEPOL almejava que se afastasse do mundo jurídico
a possibilidade de lavratura de TCO´s por órgão judiciário.
O Pleno da Corte Suprema, em votação majoritária, contudo, decidiu
inexistir qualquer afronta à Constituição Federal e reafirmou a validade do texto legal.
Após esse julgamento, ocorrido no dia 29 de junho de 2020, surgiram
algumas manifestações Brasil afora questionando de maneira equivocada o alcance e
o sentido do controle abstrato de constitucionalidade, legitimamente exercido pelo
Supremo Tribunal Federal.
Mostra-se prudente e recomendável a análise integral dos votos que
compõem o julgado, afastando a interpretação precipitada de que ali se afirmaria que
apenas o Poder Judiciário poderia lavrar TCO´s, relacionados aos crimes de plantio e
de posse de substância entorpecente para uso próprio, tipificados no art. 28 da Lei nº
11.343/2006.
Não foi isso o que o Supremo Tribunal Federal soberanamente decidiu
e não há necessidade de qualquer revisão dos procedimentos atualmente adotados
pelos agentes de segurança pública e autoridades judiciais.
Ao declarar que a lavratura de TCO não configura típica atividade
investigativa, nem tampouco atribuição privativa de polícia judiciária, o Supremo
Tribunal Federal tão somente reconheceu que, sendo viável a imediata realização da
audiência preliminar, para fins de “aplicação imediata de pena prevista no art. 28 desta
Lei, a ser especificada na proposta” de transação penal, como previsto no art. 48, § 5º,
da Lei nº 11.343/2006, com referência expressa ao art. 76 da Lei nº 9.099/1995, o
conduzido poderia ser encaminhado a uma unidade judiciária para haver, então, a
confecção do TCO.
Nessa hipótese, e apenas nessa hipótese, o TCO poderia ser
elaborado perante a autoridade judiciária, o que viria ao encontro da perspectiva de
despenalização da conduta, bem como do viés consensual, que marca e distingue a
atuação do próprio Juizado Especial Criminal, com abordagem multissetorial e
restaurativa.
Importante destacar que não podem e não devem ser tomadas em sua
literalidade as expressões de falta ou ausência da autoridade judicial, contidas nos §§
2º e 3º do art. 48 da Lei nº 11.343/2006, as quais, numa leitura apressada, reforçariam
a ideia de que apenas o juiz pode lavrar o TCO, nas hipóteses do art. 28 do mesmo
diploma legal. Antes, aquelas expressões precisam ser interpretadas de forma
sistemática e harmônica com as características inerentes à atividade jurisdicional, a qual
é ininterrupta e abrange todo o território nacional.
Todavia, em termos práticos, muito dificilmente se viabilizará a
realização imediata da audiência preliminar.
Afinal, escapa por completo da realidade hodierna imaginar que num
país continental como o nosso haja em cada comarca ou seção um magistrado e um
promotor disponíveis para receber o autor do fato e a substância apreendida; colher o
relato dos envolvidos na ocorrência; manusear a substância ilícita e confeccionar o
laudo de constatação provisória; lavrar o TCO; remeter a substância ao instituto
responsável pela perícia e confecção do laudo definitivo (este somente em caso de ação penal); certificar os antecedentes criminais; possibilitar a entrevista do autor do fato com
advogado, inclusive com a nomeação de defensor dativo, se necessário; formular,
aplicar e homologar a proposta de transação penal, assim como fornecer meios para a
execução da medida; e, enfim, dar encaminhamento quanto a atividades de atenção e
reinserção previstas na Lei nº 11.343/2006.
Aliás, o recebimento de pessoa surpreendida na posse ou no cultivo
de drogas para consumo pessoal, para fins de lavratura de TCO e realização de
audiência preliminar, sequer consta do rol de matérias submetidas ao plantão judiciário,
a teor do art. 1º da Resolução CNJ nº 71/2009.
Ademais, a formulação de proposta de transação penal de aplicação
imediata de pena pelo Ministério Público apenas se legitima se estiver lastreada num
mínimo de justa causa, o que, no caso do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, é representado
pelo laudo de constatação, previsto no art. 50, § 1º, do mesmo diploma legal.
Ora, a impossibilidade técnica de realização de tal exame pelo
Judiciário configura mais um obstáculo prático que deve ser considerado. Sob esse
aspecto, oportuno relembrar que o Manual de Bens Apreendidos, elaborado pelo
Conselho Nacional de Justiça, veda o depósito de drogas em juízo, ainda que para fins
de amostra, o que é reforçado em diversas normas internas de tribunais brasileiros.
Outro limitador que merece relevo diz respeito ao recebimento,
armazenamento e transporte da substância apreendida, inclusive diante do novel
procedimento legal de cadeia de custódia, previsto nos arts. 158-A e seguintes do
Código de Processo Penal. Referidas atividades são afetas à Polícia Científica, não ao
Poder Judiciário, o qual não detém estrutura, nem capacitação ou competência, para
desempenhá-las.
Assim, ao contrário do que se poderia supor, a ocasional lavratura de
TCO no órgão jurisdicional, reitere-se, se e quando viável a imediata realização de
audiência preliminar, não exclui, nem tampouco suplanta, a realização do ato por
qualquer agente de segurança pública: polícia federal, polícias rodoviária e ferroviária
federal, polícias civis, polícias militares e guardas municipais (art. 144, I a V, e § 8º, da
Constituição Federal).
Em outras palavras, sendo impossível a realização incontinenti de
audiência preliminar pela autoridade judiciária, o que, como se viu, é o mais comum de
ocorrer, cabe, sim, a quaisquer dos agentes de segurança pública, preferencialmente
no próprio local do fato, lavrar o TCO e colher o compromisso do autor do fato de
comparecer oportunamente ao Juizado Especial Criminal para participar da referida
audiência preliminar, em data previamente estabelecida ou quando intimado para tanto,
nos moldes do art. 69 da Lei nº 9.099/1995.
Em suma, o julgado em tela do Supremo Tribunal Federal não retirou
da Polícia Civil o dever de lavrar TCO relacionado ao art. 28 da Lei nº 11.343/2006. Ao
contrário, estendeu essa atribuição a todos os demais órgãos constitucionalmente
integrantes da segurança pública, e também à própria autoridade judicial.
Firmadas essas premissas, o FONAJE externa a sua posição no
seguinte sentido:
- A finalidade da regra inscrita nos arts. 28 e 48 da Lei nº 11.343/2006 é afastar, sempre que possível, o usuário de drogas do ambiente policial visando propiciar abordagem consensual, multissetorial e restaurativa;
- Na hipótese de se viabilizar a imediata realização de audiência preliminar, a pessoa surpreendida com a posse de drogas pode ser apresentada diretamente ao Juizado Especial Criminal com todos os elementos necessários à conformação do termo circunstanciado, nomeadamente, as testemunhas, a substância apreendida e o respectivo auto de constatação, bem como todos os elementos necessários a subsidiar a possiblidade de o Ministério Público efetuar proposta de transação penal, evitando-se seu encaminhamento ao distrito policial; e
- O art. 69 da Lei n. 9.099/1995, que não pode ser interpretado restritivamente em face do disposto no art. 144 da Constituição Federal, dispõe que, em relação aos crimes de menor potencial ofensivo e às contravenções penais, o termo circunstanciado será lavrado por qualquer agente de segurança pública que tomar conhecimento da ocorrência, seguindo o procedimento com a apresentação de autor e vítima ao Juizado Especial ou, na impossibilidade, tomando o compromisso de oportuno comparecimento.
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Resgatando a inteireza da Lei de Drogas, nossa Corte Suprema aparta
de vez o usuário da ideia punitivista, na busca pelo ideal de Justiça Restaurativa, o que
vem ao encontro da visão do FONAJE sobre o Sistema dos Juizados Especiais.
Florianópolis, 4 de agosto de 2020.
Janice Goulart Garcia Ubialli
Presidente do FONAJE
Desembargadora do TJSC
Ricardo Cunha Chimenti
Presidente da Comissão Legislativa do FONAJE
Desembargador do TJSP
Joaquim Domingos de Almeida Neto
Membro da Comissão Legislativa do FONAJE
Desembargador do TJRJ
Sergio Araújo Gomes
Membro da Comissão Legislativa do FONAJE
Juiz de Direito TJSP
Mauro Ferrandin
Membro da Comissão de Inovação do Sistema do FONAJE
Juiz de Direito TJSC