Sistema de proteção social dos militares: regime Retributivo ou Contributivo?

Roger Nardys de Vasconcellos[1]

 

Com a promulgação da Emenda Constitucional n° 103, de 12/11/2019, considerada como a última grande reforma previdenciária[2], o regime constitucional dos militares, existente desde o texto constitucional originário, e sobremodo reafirmado com a Emenda Constitucional n° 18, de 05 de fevereiro de 1998[3], foi definitivamente unificado, por meio do deslocamento da competência legislativa sobre inatividade e pensão militar dos Estados para a União, consoante a nova redação dada ao inciso XXI do artigo 22 da Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88)[4].

Em consequência dessa nova distribuição constitucional de competência legislativa, a União encaminhou o Projeto de Lei n° 1.645/2019, que resultou na Lei Federal n. 13.954, de 16/12/2019, dispondo, entre outras matérias, sobre o Sistema de Proteção Social dos Militares.

O sistema de proteção social é um subsistema jurídico contido no regime constitucional dos militares, também chamado de regime constitucional próprio dos militares, que pode ser conceituado como o conjunto de princípios e normas previstos expressa ou implicitamente na Lei Fundamental, que definem e organizam os militares no Brasil, em âmbito federal (Marinha, Exército e Aeronáutica) e estadual (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares). O regime constitucional dos militares é assentado na interpretação sistemática dos seguintes dispositivos constitucionais, dispostos aqui em ordem topográfica: artigo 5°, LXI; artigo 12, §3°, VI; artigo 14, §§ 2°e 8°; artigo 22, XXI; artigo 42[5] e §§ 1° a 3°; artigo 61, §1°, II, “f”; artigo 92, VI; artigos 122 a 124; artigo 125, §§ 3° a 5°; artigo 128, I, “c”; artigo 142 e §§ 1° a 3°; artigo 143 e §§ 1° e 2°; artigo 144, V, § 4° in fine e §§ 5° e 6°; artigo 201, §9-A. Esses dispositivos fazem remissão expressa a diversos outros, determinando a aplicação ou não aos militares, bastando seguir a trilha para entender o sentido teleológico adotado pela Constituição Federal.

Como referido, existem subsistemas jurídicos decorrentes desse regime constitucional, dentre os quais o Sistema de Proteção Social dos Militares, formado pelo conjunto normativo composto pela Lei Federal nº 3.765, de 04 de maio de 1960 (Pensão Militar); Decreto-Lei nº 667, de 02 de julho de 1969 (Organiza as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares); Lei Federal n° 6.880, de 09 de dezembro de 1980 (Estatuto dos Militares federais); e Lei nº 13.954, de 16 de dezembro de 2019 (Dispõe sobre a proteção social dos militares).

A matéria “contribuição” no âmbito do Sistema de Proteção Social dos Militares, prevista para os militares federais adstrita à “pensão militar”[6], possui natureza diversa da contribuição previdenciária do Regime Geral de Previdência (RGPS) e dos Regimes Próprios de Previdência (RPPS). Com o novo marco regulatório da proteção social dos militares, restou unificado o tratamento jurídico-constitucional entre militares federais e estaduais, que passaram a ter a mesma contribuição[7], com expressa menção ao princípio da simetria[8].

A contribuição ao Sistema de Proteção Social dos Militares não é fator de equilíbrio financeiro ou atuarial, pois compete ao Tesouro, dentro desse modelo não contributivo[9], o pagamento da remuneração do militar ativo e inativo, bem como dos proventos da pensão militar. A contribuição do militar também não é requisito para o implemento das condições à inatividade, pois aos militares o critério legal é o de tempo de serviço militar[10], cujo implemento não rompe o vínculo quando da inatividade, diferentemente do servidor público, que se aposenta, e com a aposentadoria tem a extinção do vínculo com o ente estatal[11].

Outro ponto relevante é a inaplicabilidade dos institutos do RPPS ao Sistema de Proteção Social dos Militares [12], de modo que a própria progressividade da alíquota ou a contribuição extraordinária, institutos trazidos pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019[13], são restritos ao modelo previdenciário dos servidores públicos, regulado pelo artigo 40 da Constituição Federal.

Em face da natureza acessória da contribuição no Sistema de Proteção Social dos Militares, posto que não é elemento estruturante do modelo, a Emenda Constitucional nº 103 optou por suprimir dos Estados e atribuir à União competência para a edição de normas gerais sobre inatividades e pensões militares, sem mencionar expressamente a contribuição, pois como visto, é adjacente à pensão militar e subsidiária em um modelo retributivo.

Na União, para os militares federais, nenhuma inovação significativa decorre do novo marco regulatório. Contudo, nos Estados, implicou em ruptura nos diversos modelos legislativos existentes, muitos incompatíveis com o regime constitucional dos militares[14].

Nessa conformação legislativa, as normas gerais da União acarretam a imediata suspensão da eficácia das normas estaduais colidentes[15], dentre elas as que estabelecem aos militares estaduais alíquotas em desconformidade com o Sistema de Proteção Social dos Militares, ou seja, diversas da adotada aos militares federais, que doravante passam a incidir sobre a totalidade da remuneração ou proventos, sem qualquer faixa de imunidade[16].

Ocorre que nem sempre a mens legis é compreendida pelo operador do direito, de modo que o Estado do Rio Grande do Sul e o Estado do Mato Grosso entraram com ação junto ao Supremo Tribunal Federal argumentando que subsiste a competência dos Estados para a alíquota dos militares e da pensão militar, posto que a matéria não estaria contemplada pelo Sistema de Proteção Social dos Militares, uma vez que não constou expressamente na nova redação do inciso XXII do artigo 21 da CF/88. Sem embargo das liminares deferidas pelo Ministro Luís Roberto Barroso, na Ação Civil Originária nº 3350-RS[17] e Ministro Alexandre de Moraes, na Ação Civil Originária nº 3396-MT[18], com efeitos inter partes, temos convicção de que a decisão final da Corte será em conformidade com o regime constitucional dos militares.

Em síntese, o tema “contribuição” prescindiu de constar, ao lado de inatividade e pensão militar, expressamente na nova redação do mencionado inciso XXII do artigo 21 da Constituição da República, em razão de não ser elemento estruturante da proteção social. Isso porque a tutela de proteção social dos militares, federais ou estaduais, dentro do marco regulatório estabelecido pela Lei nº 13.954, de 2019, possui natureza retributiva, o que significa dizer, resumidamente, que o Tesouro deve suportar o custeio de seus militares, ativos ou inativos, e pensionistas militares, independentemente de fundo ou critérios de equilíbrio atuariais.

Derradeiramente, a norma geral da União acima destacada, editada na esteira do inciso XXI do artigo 22 da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 103/19, tem eficácia imediata e independe de qualquer alteração nos ordenamentos estaduais, merecendo interpretação sistêmica, posto que “não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços” [19].


Notas

 

[1] É Diretor Jurídico Nacional da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais – FENEME (http://www.feneme.org.br) e vice-presidente da Associação dos Oficiais Militares Estaduais do RS – ASOFBM (http://www.asofbm.org.br). É Bacharel em Direito (PUC/RS) e em Ciências Policiais e Segurança Pública (APM/RS), além de Especialista em Direito Processual Civil (PUC/RS), em Direito Militar (PUV/RS) e em Políticas e Gestão em Segurança Pública e Defesa Civil (ABM/RS). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1178089164481297

[2] A Constituição Federal de 1988 adotou dois grandes regimes previdenciários: (i) o regime próprio de previdência social (RPPS), constante no artigo 40, aplicável a todos os servidores públicos, de todas as esferas de poder; e (ii) o regime geral de previdência social (RGPS), disposto no artigo 201 e segs., abrangendo os demais trabalhadores sob a égide da Consolidação das Leis do Trabalho e os informais. Nas últimas décadas, esses dois grandes regimes previdenciários sofreram sucessivas transformações, em especial pelas Emendas Constitucionais (EC) nº 20, de 15/12/1998, nº 41, de 19/12/2003, e nº 47, de 05/07/2005. Essas emendas, tendentes à convergência e unificação das regras dos dois regimes, chegaram ao seu apogeu com o advento da última reforma previdenciária, implementada pela EC 103, de 12/11/2019.

[3] Ementa: “Dispõe sobre o regime constitucional dos militares”.

[4] CF/88, artigo 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (…) XXI – normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares; (Redação dada pela EC 103, de 2019) (g.n.)

[5] Sobre o disposto no artigo 42 da Constituição Federal quanto ao tema, vale conferir “Constituição Federal Interpretada” (in: MACHADO, Antônio Cláudio da Costa [Coord]. 11. ed. São Paulo: Manole, 2020, disponível em: https://www.manole.com.br/constituicao-federal-interpretada-11-edicao/p) e o artigo “A celeuma do direito à aposentadoria especial aos servidores públicos: O caso especial dos policiais e militares dos estados”: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-previdenciario/a-celeuma-do-direito-a-aposentadoria-especial-aos-servidores-publicos-o-caso-especial-dos-policiais-e-militares-dos-estados / (ambos de Azor Lopes da Silva Júnior).

[6] Lei n. 3.765/60, artigo 3º-A. A contribuição para a pensão militar incidirá sobre as parcelas que compõem os proventos na inatividade e sobre o valor integral da quota-parte percebida a título de pensão militar.

I – de 9,5% (nove e meio por cento), a partir de 1º de janeiro de 2020;

II – de 10,5% (dez e meio por cento), a partir de 1º de janeiro de 2021. (g.n.)

[7] Decreto-Lei n. 667/69, artigo 24-C. Incide contribuição sobre a totalidade da remuneração dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, ativos ou inativos, e de seus pensionistas, com alíquota igual à aplicável às Forças Armadas, cuja receita é destinada ao custeio das pensões militares e da inatividade dos militares. (incluído pela Lei nº 13.954, de 2019) (g.n.)

[8] Decreto-Lei n. 667/69, artigo 24-H. Sempre que houver alteração nas regras dos militares das Forças Armadas, as normas gerais de inatividade e pensão militar dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, estabelecidas nos artigos 24-A, 24-B e 24-C deste Decreto-Lei, devem ser ajustadas para manutenção da simetria, vedada a instituição de disposições divergentes que tenham repercussão na inatividade ou na pensão militar. (Incluído pela Lei nº 13.954, de 2019) (g.n.)

[9] Decreto-Lei n. 667/69, artigo 24-C, § 1°. Compete ao ente federativo a cobertura de eventuais insuficiências financeiras decorrentes do pagamento das pensões militares e da remuneração da inatividade, que não tem natureza contributiva.  (Incluído pela Lei nº 13.954, de 2019) (g.n.)

[10] CF/88, artigo 201, § 9º-A. O tempo de serviço militar exercido nas atividades de que tratam os artigos 42, 142 e 143 e o tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social ou a regime próprio de previdência social terão contagem recíproca para fins de inativação militar ou aposentadoria, e a compensação financeira será devida entre as receitas de contribuição referentes aos militares e as receitas de contribuição aos demais regimes.  (Incluído pela EC nº 103, de 2019) (g.n)

[11] CF/88, artigo 37, § 14. A aposentadoria concedida com a utilização de tempo de contribuição decorrente de cargo, emprego ou função pública, inclusive do Regime Geral de Previdência Social, acarretará o rompimento do vínculo que gerou o referido tempo de contribuição.  (Incluído pela EC nº 103, de 2019) (g.n)

[12] Decreto-Lei n. 667/69, artigo 24-E, parágrafo único. Não se aplica ao Sistema de Proteção Social dos Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios a legislação dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos.  (Incluído pela Lei nº 13.954, de 2019) (g.n.)

[13] CF/88, artigo 149. (…)

  • A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, por meio de lei, contribuições para custeio de regime próprio de previdência social, cobradas dos servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas, que poderão ter alíquotas progressivas de acordo com o valor da base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de pensões.
  • 1º-A. Quando houver deficitatuarial, a contribuição ordinária dos aposentados e pensionistas poderá incidir sobre o valor dos proventos de aposentadoria e de pensões que supere o salário-mínimo.
  • 1º-B. Demonstrada a insuficiência da medida prevista no § 1º-A para equacionar o deficitatuarial, é facultada a instituição de contribuição extraordinária, no âmbito da União, dos servidores públicos ativos, dos aposentados e dos pensionistas.   (g.n.)

[14] Algumas legislações estaduais estabeleceram impropriamente (em benefício) aos militares a mesma faixa de imunidade existente no § 18 do artigo 40 da CF/88, instituto típico do RPPS.

[15] O entendimento sobre a suspensão da eficácia das normas estaduais colidentes com normas gerais da União restou sedimentado na jurisprudência da Suprema Corte, conforme o seguinte precedente: (…) À União cabe legislar sobre normas gerais, de observância cogente aos demais entes da federação (CF/88, artigo 24, § 1º). 3. A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrária (CF/1988, artigo 24, § 4º). Assim, lei estadual que entre em conflito com superveniente lei federal com normas gerais em matéria de legislação concorrente não é, por esse fato, inconstitucional, havendo apenas suspensão da sua eficácia. (…) (ADI 3829, Relator Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 11/04/2019, Publicação 17-05-2019) No mesmo sentido: ADI 2030, Relator Min. GILMAR MENDES, Pleno, J. em 09/08/2017, Publicação em 17-10-2018 (g.n.)

[16] Sobre o tema, vide nosso artigo disponível em https://www.feneme.org.br/o-regime-de-previdncia-complementar-e-o-sistemaconstitucional-de-proteo-social-dos-militares-no-brasil/

[17] STF, Ação Civil Originária nº 3.350. Em 19/02/2020. “(…) defiro o pedido de tutela de urgência, para determinar que a União se abstenha de aplicar ao Estado do Rio Grande do Sul qualquer das providências previstas no artigo 7º da Lei nº 9.717/1998 ou de negar-lhe a expedição do Certificado de Regularidade Previdenciária caso continue a aplicar aos policiais e bombeiros militares estaduais e seus pensionistas a alíquota de contribuição para o regime de inatividade e pensão prevista em lei estadual, em detrimento que prevê o artigo 24-C do Decreto Lei nº 667/1969, com a redação da Lei nº 13.954/2019. 16. Cite-se a União. Publique-se. Intimem-se.

[18] STF, Ação Civil Originária nº 3.350. Em 19/05/2020. “(…) Diante do exposto, presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, DEFIRO a tutela de urgência, liminarmente, para determinar que a União se abstenha de aplicar ao Estado de Mato Grosso qualquer das providências previstas no artigo 7º da Lei nº 9.717/1998 ou de negar-lhe a expedição do Certificado de Regularidade Previdenciária caso continue a aplicar aos policiais e bombeiros militares estaduais e seus pensionistas a alíquota de contribuição para o regime de inatividade e pensão prevista em lei estadual, em detrimento do que prevê o artigo 24-C do Decreto-Lei nº 667/1969, com a redação da Lei nº 13.954/2019”.

[19] STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.916, j 03/02/10, Relator Ministro Eros Grau, com fundamento em suas obras: Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do Direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 44 e 131-32; e A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2008, p. 164.